AVIFAUNA IMAGINÁRIA 





texto curatorial de Marina Bortoluzzi


A imaginação é expansiva, cria asas. Assim é Anna Livia Taborda Monahan na estreia de sua primeira exposição individual. Tal qual o ovo, símbolo encontrado na grande maioria de suas obras, aqui presenciamos a gênese. O ponto de partida e nascimento desta artista. Revelando ao mundo 34 obras inéditas, incubadas entre 2022 e 2024, produzidas em pinturas à óleo e esculturas polípticas meticulosamente construídas em papel machê, a mostra é um panorama e o embrião de sua recente jornada artística. Seu corpo de trabalho e pesquisa são pautados por referências que transitam pelo Pré-Renascentismo, o Surrealismo, a alquimia, o cinema e a poesia.

Na série apresentada, que ocupa todo o Espaço Sergio Porto, adentramos no estudo, científico-fantástico, da germinação de um novo conjunto de aves. Como uma investigadora da espécie, a artista nos convida a conhecer seu gabinete de curiosidades1 . No contexto do Surrealismo, o gabinete de curiosidades pode ser visto também como uma metáfora para o inconsciente. A artista de essência eremita, em seu momento mais altruísta, abre as portas do seu universo onírico e oculto para experimentarmos uma realidade surreal e ilógica, e, concomitantemente, familiar e mágica, aflorando nosso olhar puro e genuíno da infância. Como sugere o artista italiano, fundador da Escola Metafísica, Giorgio de Chirico, “O que é especialmente necessário é uma grande sensibilidade: olhar para tudo no mundo como um enigma. Viver no mundo como num imenso museu de coisas estranhas”2.

O olhar atento sempre encontrará significado. Não existe certo e errado. Pelas Leis Herméticas3, do filósofo do misticismo e da alquimia Hermes Trismegisto, o que está embaixo é como o que está em cima. As simbologias pictóricas reunidas nesta sala reforçam a existência dessa dualidade. A começar, novamente, pela iconografia do ovo, representação do interior e exterior, como muito bem definiu a artista surrealista, também de ancestralidade irlandesa, Leonora Carrington, “O ovo é o macrocosmo e o microcosmo, a linha divisória entre o Grande e o Pequeno que torna impossível ver o todo”4. O ovo se torna um objeto polivalente nas nossas mãos, pode ser ave, ponto solar, amuleto ou divindade, fertilização ou transmutação, a quintessência.

Os pássaros, por sua vez, formam o elo entre céu e terra, entre consciente e inconsciente, considerados, universalmente, símbolos da alma ou anima, como a respiração do mundo em busca de liberdade e iluminação espiritual5. Max Ernst, pintor surrealista de pássaros por excelência, uma das inspirações de Anna Livia, retratava a ave em seu estado mais humano, essa transcendência também é observada aqui, seja de forma explícita, como em “Aparição”, ou em bando, com senso de comunidade, em “Encontro”, “Monólito” e “Urubus na Cidade Medieval”.

A árvore, emblema central dos alquimistas e manifestação da vida, é encontrada nestes cenários, sobretudo através de suas raízes. Em “Pneumopássaro”, a árvore é brônquica, reflexo de uma lobectomia que enfrentou a artista, com a retirada de um de seus lobos pulmonares. Em contrapartida, em “Paisagem”, a raiz dá luz a seres frutíferos. Já em “Raízes Expostas”, fica a analogia da artista para sua exposição, no sentido de se expor, ainda que emaranhada. Avistamos juntamente outros elementos nas imagens hipnagógicas (criadas nos sonhos e no subconsciente) da artista, como a aparição das pedras e do vidro, que com sua transparência representa a dualidade entre o visível e o invisível, o material e o imaterial. A figura do bulbo da lâmpada ou o ovo sobre a luz refletem nossa consciência, clarividência, a expansão intelectual e a iluminação criativa.

Para além disso, a dicotomia acontece também nas paisagens que contemplamos. Hora solo fértil, com vegetação natural; hora árida ou em locais ermos, de arquitetura geométrica como horizonte. Fragmentos de cenas cotidianas ou inventadas, sem tempo específico. Interessa para a artista dissecar esse diálogo constante, entre claro e escuro, cor e sombra, plano e profundidade, dia e noite. A convivência dos contrastes é bem-vinda, inclusive na paleta de cores. A predominância é pelos tons quentes, com tonalidades alaranjadas e vermelhas, mas cores frias também ecoam, sempre para compor esse clima misterioso e sombrio, onde independente das figuras, o silêncio interior é o grande protagonista. Mesmo que, externamente, a gente escute o canto dos pássaros como trilha desta miragem. “Avifauna Imaginária” sugere explorarmos realidades mutuamente distintas e extrairmos uma faísca de sua justaposição.

  1. O termo, com origem na Europa dos séculos XVI e XVII, designava às coleções privadas que consistiam na descoberta de uma variedade de objetos exóticos, raros, científicos, artísticos e naturais, reunidas por colecionadores entusiastas. 
  2. Peggy Guggenheim Collection. Surrealism and Magic. Prestel, 2022. 
  3. ROOB, A. Alquimia & Misticismo. Taschen, 2020. 
  4. ABERTH, S. Leonora Carrington - Surrealism, Alchemy and Art. British Library, New York, 2010. 
  5. RONNBERG, A. O Livro dos Símbolos. Taschen, 2012. Anna Livia Taborda monahan Avifauna Imaginária



SOUNDSCAPE

Durante a exposição se passou a Paisagem Sonora, de 40 min em looping,  “Avifauna Imaginária em 4 atos” criada em colaboração entre a artista Anna Livia Taborda Monahan e Gabriel Santos,  a partir da expografia e obras da exposição.